sábado, 28 de setembro de 2013

A REALIDADE INTERNA E A REALIDADE EXTERNA. A FORÇA DE UMA E OUTRA.

A REALIDADE INTERNA E A REALIDADE EXTERNA. A FORÇA DE UMA E OUTRA.

Não abundam as oportunidades de percebermos com satisfatória nitidez a dimensão psicológica dos nossos comportamentos e do que determina a maneira como nos envolvemos com as pessoas que nos rodeiam (em casa, na escola, no trabalho, na sociedade...).
Aquela coisa estranha, quase inefável, a que os engenheiros do comportamento - os psicólogos - deram o nome de "realidade interna", é, na verdade, uma coisa espantosa, de uma força tremenda. Muitas vezes - eu diria mesmo, quase sempre - são as crianças - naquelas fases em que naturalmente procuram, não as palavras adultas, sofisticadas, dos disfarces e das aproximações cautelosas às coisas e aos fenómenos, mas, pelo contrário, ia eu dizer, procuram a palavra, a frase, a forma certa, exata para que as palavras sirvam claramente, rigorosamente, o pensamento e o sentir - que nos mostram com jeito maravilhosamente límpido o que, afinal, todos nós - os adultos - sentimos... Sentimos mas, intrigantemente, à medida que fomos crescendo, perdemos a capacidade de saber expressar.
Uma antiga aluna, por quem tenho um carinho muito especial, trouxe-me à fala um dos seus rapazes. Procurei, na breve conversa que tivemos, tão simplesmente que pudesse formar de mim, em sintonia com as suas necessidades e motivações pessoais, a apreciação e a imagem afetiva que quisesse; e combinámos voltar a conversar. A partir de agora, já poderá formar uma apreciação mais real, menos simplesmente imaginada, dessa pessoa que um dia apareceu na sua vida, com a fantasia de ser o Tio das Baleias. Também a partir de agora poderá preparar-se para a conversa aprazada, com o que de si quiser trazer, ele, que um dia pediu à mãe que lhe arranjasse um médico que o ajudasse a tratar os sonhos.
Tio das Baleias, Médico dos Sonhos, a que mais desafios me levará esta criança espantosa?...
O meu "sobrinho", o meu "paciente" vive intensamente, quase tempestivamente, a organização e a estabilização do seu mundo interior, aquele que nos faz sentirmo-nos pessoas únicas, portadoras de fantasias e desejos; de ambições e quase infinitas outras motivações.
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Os sonhos são uma via privilegiada de organização da nossa vida mental interior, de progressiva separação entre o que nos põe em relação, por um lado, com tudo aquilo que existe e todos aqueles que existem para além de nós; e, por outro lado, com tudo aquilo que vem dos nossos sentires, dos nossos pensamentos, das nossas memórias. A natureza do nosso desenvolvimento limita-nos no modo de fazermos essa separação entre mundo interno e mundo externo. O ser humano precisa de tempo - tempo para que estruturas neurofisiológicas despertem e se estabilizem; tempo para que a Língua nos traga um número minimamente satisfatório de palavras que permitam representar, para os outros e para nós próprios, o que sentimos e o que queremos falar. E há sempre um tempo de amadurecimento de tudo, absolutamente indispensável. Aos poucos, a dimensão simbólica da experiência mental toma formas compreensíveis para o próprio e para que o próprio as partilhe com os outros. Por vezes, a organização da vida simbólica interior estabelece-se de forma muito turbulenta e sofrida. Simbolizar ajuda a compreender; compreender ajuda a dominar e a aceitar; aceitar ajuda a fazer das fraquezas forças.
O sobrinho do Tio das Baleias debate-se, então, há bastante tempo, numa luta muito afligida para ele e para quem nunca lhe faltou ao lado - uma mãe tenazmente disponível. Luta entre ele e os sonhos que fazem parte da hora de dormir. Essa luta, mais tranquila na generalidade das crianças, é nele muito dinâmica, exuberante, tensa, dramática, que o impede de chegar à paz e à saúde do sono.
Há pouco tempo, algures nessa luta travada com a aliada-mãe ali ao seu lado, uma coisa nova aconteceu. A trazer-lhe sinal de que poderia passar a ganhar a guerra. E explica à mãe o que sente, num jeito - espantoso e simples, como só as crianças conseguem fazer! - que ela me reproduz assim:
- "Houve uma vez que me disse que teve um pesadelo mas que era diferente dos outros...  que este era com animais a sério...  por isso não teve tanto medo..."
Extraordinário! Os animais que metem medo não são os verdadeiros, por maiores que sejam as feras, são os que inventamos. O que vem de dentro de nós, tantas vezes sem a gente saber de onde vêm e porque vêm naquele momento, daquela forma, é bem mais poderosamente angustiante do que tantos perigos que vêm de fora, de tudo aquilo ou de toda a gente que existe e vive à nossa volta.
Foi, portanto, desta forma lapidar que a criança nos trouxe à consciência e ao conhecimento a força do que tanto nos adultos como nas crianças nos ameaça o prazer de viver e a sensação de bem-estar que bem gostaríamos de teu em tudo o que nos envolvemos no dia a dia.
Já um dia, há muitos anos, o Sérgio Godinho se interrogava num belo trecho musical sobre uma força estranha que aparecia pelo lado de dentro de cada um de nós, que nos tolhia mais do que as outras tantas que naquele tempo nos queriam impor. Perguntava-se ele"que força é essa, que força é essa, amigo", que só nos manda obedecer, e que nos põe de bem com os outros e de mal connosco mesmos. Sim, é uma força tremenda, telúrica, que nos faz inventar animais bem mais assustadores que as feras que existem mesmo! É uma força que vem dentro de nós, que cresce e se agita bem para além da nossa vontade de a dominar.

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