O neurocientista Johannes Ziegler considera que o sucesso na área da educação depende, em grande parte, da aplicação dos conhecimentos que a psicologia cognitiva tem para dar. Vem esta quarta-feira a Portugal debater o tema na Fundação Francisco Manuel dos Santos.
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Johannes Ziegler é um reconhecido neurocientista em França. Estará em Portugal no final do mês para debater sobre o papel da psicologia cognitiva na educação
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É um dos segredos mais bem guardados da educação e uma das maiores preocupações partilhadas entre pais de alunos que entram no 1.º ano de escolaridade: como aprender e ensinar a ler? Na Europa, 19% dos jovens com 15 anos revelam dificuldades na leitura a nível mais básico. Já em Portugal, apesar de menor, este número fixa-se nos 17,2%. Johannes Ziegler, 52 anos, um reconhecido neurocientista francês, acredita que (quase) tudo pode ser solucionado com a ciência. Por isso, dedicou a sua carreira a estudar este tema, sobre o qual já tem dezenas de publicações.
É membro do Conselho Científico de Educação Nacional de França, diretor do Centro Nacional de Investigação Científica (CNRS) francês, mas também do Laboratório de Psicologia Cognitiva da Universidade de Aix-Marselha. Atualmente, foca o seu dia-a-dia numa investigação sobre a eficácia do digital como ferramenta de ensino na escola primária. Mas terá tempo para dar um pulo até Portugal. Esta quarta-feira, a partir das 15.00, será orador da
conferência "Como aprende o cérebro? O papel das ciências cognitivas na educação", promovida pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, no Auditório do Liceu Camões, em Lisboa. O DN esteve à conversa com o investigador.
Há uma discrepância entre os resultados práticos da educação e o avanço do conhecimento científico, cada vez mais capaz de nos fazer entender os caminhos do cérebro e como chegar ao sucesso escolar. O que explica este cenário?
As explicações podem ser várias, na verdade. A primeira é que leva tempo até o conhecimento científico se disseminar. Há sim uma enorme lacuna entre este conhecimento e a prática educacional. Por exemplo, os cientistas conhecem os melhores determinantes para a fluência e compreensão da leitura, mas os professores precisam de saber como é que estes determinantes podem ser ensinados aos seus alunos de forma eficiente. Há um problema de falta de preparação na transferência de conhecimento científico para a prática em sala de aula. Alguns países são muito bons nisto, mas outros não.
O que é que a experiência lhe tem dito: os professores estão cada vez mais ou menos adaptados ao conhecimento que as ciências cognitivas têm provado sobre o cérebro humano?
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Quando uma criança demonstra dificuldades em aprender a ler, "a melhor estratégia continua a ser a intervenção intensiva da escola". "Não há soluções mágicas", diz o neurocientista
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Não acho que estejam cada vez menos adaptados, porque têm aprendido muito com a neurociência da educação, sobre o processo de aprendizagem, a atenção, a memória, etc. Mas, atualmente, há muito pouca preparação de professores para algumas destas questões. É preciso compreender, por exemplo, que o cérebro está a mudar drasticamente durante a adolescência, que pode ser também o início de muitos distúrbios psiquiátricos, como depressão ou esquizofrenia.
Não é compreensível que hoje, com as ferramentas cognitivas que temos, não as utilizemos para exercer educação...
Definitivamente que não. Estamos num ponto de viragem histórico. Antes, a educação estava exclusivamente nas mãos dos departamentos de formação de professores e ciências da educação. Agora, sabemos que a aprendizagem é complexa e acontece num contexto social complexo. Há muito a aprender com outras disciplinas: psicologia social (comparações sociais, atitudes, estereótipos), metacognição (autoeficácia, aprender a aprender, pensamento positivo), psicologia cognitiva (aprendizagem, memória, atenção, personificação), psicolinguística e linguística (linguagem, compreensão, gramática, leitura, aprendizagem de segunda língua), sociologia e economia (desigualdade, pobreza), neurociência (plasticidade, conectividade, oscilações, ciclos circadianos, recompensa, feedback), ciência da computação (ferramentas educacionais, big data), filosofia (pensamento crítico, raciocínio), matemática (como tornar a matemática concreta e incorporada). Seria um erro enorme voltar atrás nessas fabulosas fontes de conhecimento sobre o cérebro.
Dedicou-se a esta ciência toda a vida, mas particularmente ao estudo de como é que as crianças aprendem a ler. Qual o papel da psicologia cognitiva neste campo?
Graças à ciência cognitiva da leitura, agora sabemos os ingredientes cognitivos e linguísticos exatos, sabemos como o processo funciona, na medida em que podemos programar um modelo de simulação que aprende como uma criança. Aprender a ler e a ensinar a ler já não é uma questão de opinião, tornou-se uma ciência difícil. Conhecemos o mecanismo do processo, assim como compreendemos como funciona o motor de um carro. Também entendemos muito melhor o que pode correr mal. Podemos simular num computador dificuldades de leitura específicas e possíveis resultados de intervenção. Graças à neurociência, conhecemos agora os substratos neurais destes processos, sabemos onde ocorre a aprendizagem no cérebro, quais as regiões que estão envolvidas, a rede neural, a importância dos fatores genéticos e do ambiente.
Em Portugal, as aulas já se iniciaram há mais de dois meses. Aprender e ensinar a ler é, nesta altura, uma preocupação de muitos pais com os filhos que entraram no 1.º ano de escolaridade. A partir de quando é legítimo que estejam realmente preocupados com possíveis dificuldades?
Os pais e professores devem estar sempre atentos e solidários desde o início. Se uma criança tiver problemas para aprender as letras e a forma como soam, não há necessidade de esperar até que a criança acumule um atraso de leitura que seja suficientemente importante para qualificá-la como disléxica. A criança precisa de treino adicional (que deve ser sistemático e intenso) antes de ficar para trás. E atenção, que isto não significa já que essa criança é disléxica. Significa apenas que precisa de ajuda adicional.
Então, como é que os pais e professores devem responder na prática?
É fundamental que os pais ofereçam oportunidades de leitura, principalmente compartilhada, para estimular o interesse nos livros. Os professores precisam de garantir um bom ensino e um bom apoio. Se o atraso da criança for superior a dois anos (uma criança lê no 3.º ano como uma do 1.º ano), os pais e os professores devem preocupar-se em dar apoio adicional, começando por um diagnóstico formal. E, mesmo com um diagnóstico formal, a melhor estratégia continua a ser a intervenção intensiva da escola. Não há soluções mágicas.
As tecnologias podem ser um amigo ou inimigo desta aprendizagem? Porque falamos frequentemente sobre a importância de uma escola adaptada aos novos tempos, onde os alunos têm acesso a computadores e até a tablets, mas há estudos que afirmam que a compreensão de textos impressos é superior à compreensão de textos equivalentes no suporte digital.
Vou dar um exemplo muito simples: a Ordem da Fénix, da saga de Harry Potter, contém 257 mil palavras. Uma criança que é capaz de ler este livro num fim de semana terá um quarto de milhão de oportunidades de aprendizagem, supervisionada, em que o significado do que é lido à criança é descodificado corretamente. Isto é chamado de "autoensino". Nenhum professor e nenhum tablet podem fazer melhor do que isto.
Mas algumas crianças não têm esta iniciativa nem são estimuladas para ela...
Exato. O problema é que algumas crianças não chegam lá, não entram no ciclo de autoaprendizagem, em que a leitura fortalece a aprendizagem. Para estas crianças que lutam para aprender as letras e os seus sons, o software educacional pode ser benéfico porque um tablet pode adaptar-se ao nível da criança e apresentar letras e sons milhares de vezes num ambiente lúdico. Além disso, crianças com problemas visuais podem beneficiar do espaçamento extra das letras nos e-books.
Então, o sucesso da educação passa por caminhar lado a lado com a ciência...
O sucesso educacional não vem apenas da psicologia cognitiva, mas seria uma loucura não usar esta base do conhecimento assente em evidências. Sabemos muito sobre a atenção, a memória e a aprendizagem das nossas crianças. Os custos da inação seriam tremendos.
″A Ordem da Fénix de Harry Potter dá um quarto de milhão de oportunidades para uma criança aprender″ - DN