domingo, 16 de agosto de 2015

Reflectir, acreditar, decidir - com Jeam Monnet

Da convicção à decisão, através do pensamento.

uma lição de Psicologia de Jean Monnet

É tão claro o que Jean Monnet diz nas suas Memórias, a abrir o capítulo 12, precisamente titulado "Uma acção profunda, real, imediata...", que me abstenho de acrescentar seja o que seja. Apenas destacarei, a negrito ou sublinhado, o que considero serem os conceitos-chave desta notável síntese introspectiva.
«Não seria capaz de dizer de onde vem a convicção que, nas circunstâncias importantes da minha vida, trava bruscamente a minha reflexão contínua para a transformar em decisão. É aquilo a que há quem chame o sentido da oportunidade. Não me interrogo, porém sobre a necessidade de fazer isto ou aquilo - é a necessidade que me leva a fazer algo que deixa de ser uma opção a partir do momento em que o vejo com clareza. Para o ver com clareza, preciso de me concentrar - o que só consigo com isolamento, durante longas caminhadas. Desde que saí de Cognac (1), organizei a minha vida de maneira a acordar no campo, a uma boa distância da cidade onde trabalho. Levanto-me cedo  e percorro quilómetros sozinho. Quando saio de casa, levo comigo todos os pensamentos e todas as preocupações da véspera. Depois de caminhar meia hora ou uma hora, começam a desaparecer, e, a pouco e pouco, descubro as coisas que me rodeiam, reparo nas flores ou nas folhas das árvores. Nesse instante, sei que nada pode perturbar-me. Deixo que as minhas ideias se coloquem, por si mesmas, no seu devido lugar. Não me forço a reflectir num determinado assunto - os assuntos surgem-me naturalmente, porque persigo sempre o mesmo pensamento, ou melhor, só persigo um de cada vez. André Horré, que, com a sua mulher, Amélie, se ocupou da nossa casa - melhor dizendo, das nossas sucessivas casas, em Inglaterra, nos Estados Unidos, em França, no Luxemburgo - durante perto de 30 anos, compreendeu-me bem. "É simples, o senhor Monnet põe a sua ideia à frente, fala com ela e tira conclusões."» 
«Je ne saurais dire à quoi tient cette conviction qui dans les circonstances importantes de ma vie arrête brusquement ma réflexion continue pour la transformer en décision. C'est ce que d'autres appellent le sens du moment. Mais je ne m'interroge pas sur la nécessité de faire ceci ou cela – c'est la nécessité qui me conduit à faire quelque chose qui n'est plus un choix dès l'instant où je le vois clairement. Pour le voir clairement, je dois me concentrer – ce que je ne peux obtenir que dans l'isolement, au cours de longues marches. Depuis que j'ai quitté Cognac, j'ai disposé ma vie de manière à me réveiller dans la nature, à bonne distance de la ville où je travaille. Je me lève tôt et je parcours des kilomètres en solitaire. Quand je quitte la maison, j'emporte avec moi toutes les pensées, les préoccupations de la veille. Mais quand j'ai marché pendant une demi-heure ou moment-là, je sais que rien ne peut me déranger. Je laisse mes idées se situer d'elles-mêmes à leur propre niveau. Je ne me force pas à réfléchir à un sujet donné – les sujets me viennent naturellement parce que je poursuis toujours la même pensée, ou plutôt je n'en poursuis qu'une à la fois. André Horré, qui s'est occupé avec sa femme Amélie de notre maison – je devrais dire de nos maisons successives, en Angleterre, aux États-Unis, en France, à Luxembourg – pendant près de trente ans, m'avait bien compris. « C'est simple, Monsieur met son idée devant lui, il lui parle et il conclut. »


(1) A terra de Jean Monnet, em França.

domingo, 2 de agosto de 2015

Falar do amor... É fácil ou são os adultos que complicam?

Exemplo de uma Dharma talk, por Zoketsu Norman Fischer
Um dia, ao final da tarde, a seguir a um sermão Dharma (1), no Centro Zen de Cambridge, um estudante chegou-se a Seung Sahn Soen-sa e perguntou-lhe: O que é o amor?
Soen-sa disse-lhe: Pergunto-te eu: o que é o amor?
O estudante ficou calado.
Então, Soen-sa disse-lhe: Isto é o amor.
O estudante que interpelou Soen-sa continuou calado.
Soen-sa disse-lhe então: Tu perguntas-me. Eu pergunto-te. Isto é o amor.

One evening, after a Dharma talk at the Cambridge Zen
Center, a student asked Seung Sahn Soen-sa, "What is
love?"
Soen-sa said, "I ask you: what is love?"
The student was silent.
Soen-sa said, "This is love."
The student was still silent.
Soen-sa said, "You ask me: I ask you. This is love." 
(in Dropping Ashes on the Buddha: The Teachings of Zen Master Seung Sahn, by Zen Master Seung Sahn (Author), Stephen Mitchell (Compiler), 1976)

(1) 'Dharma talk é uma espécie de sermão, de discurso público sobre budismo, dado por um professor budista.

sexta-feira, 3 de julho de 2015

Sigmund Freud, sempre e sempre escrutinado

S. Freud, em 1926, com 70 anos.
Não sei se haverá outro autor, outro cientista, outro homem, que tenha sido tantas e tantas vezes
escrutinado em todas as dimensões da sua vida.
Tomei recentemente contacto com o trabalho de Mikkel Borch-Jacobson, "Les Patients de Freud, destins".
Borsch-Jacobson tem claramente uma cruzada contra o fundador da Psicanálise. Seja. Na obra, apresentado como filósofo e historiador; na Wikipedia como professor de Literatura Comparada e Francês; a sua tese de doutoramento foi sobre Freud. Ponto.
Pergunto: será que algum dia alguém escrutinará, com a mesma veemência, outros autores-cientistas-clínicos como se insiste em fazer com Freud?
Trago à consciência as elegantes e sustentadas refutações de António Damásio às contribuições científicas de Freud - sim senhor, modelares!
Já agora, pergunto: o que conseguiu, até agora, este veemente autor provar acerca de Freud, inequivocamente?

sábado, 28 de março de 2015

O heróico defensor dos habitantes do planeta Terra anda de metro em Lisboa

O heróico defensor dos habitantes do planeta Terra anda de metro em Lisboa,
em Lisboa dia 4 de Março de 2015, quarta-feira

http://www.moddb.com/groups/empire-at-war/downloads/
save-games-star-wars-the-force-unleashed-use
            Pouco passava das seis da tarde. Tinha acabado de deixar o encontro do British Bar das quartas-feiras e voltava para casa como de costume: de metropolitano, na estação do Cais do Sodré. Já lá em baixo, a chegar ao cais, a dúvida de sempre: a composição do Metro vai aparecer do lado direito, ou do lado esquerdo?...
            Do lado esquerdo, os bancos estavam todos ocupados, e havia muitas pessoas de pé. A composição não deveria tardar, e deveria aparecer por aquele lado; mas eu queria sentar-me a ler. Do lado direito do duplo cais um dos bancos tinha apenas um utilizador: um jovem, de 13 ou 14 anos, talvez. Os dedos do rapaz metralhavam avidamente as teclas laterais de um desses já tão vulgarizados aparelhos de jogos digitais, que a gente agora vê sempre quando se depara, nos espaços públicos, com gente jovem – bastam dois rapazinhos, quase seguramente um deles estará vociferando silenciosas imprecações contra jogadores de futebóis adversários, inimigos de outros exércitos, ou invasores do Espaço. Seria o caso desta vez, num brevíssimo inclinar do aparelho que tinha nas mãos, o rapaz deixou-me ver o que parecia ser um cenário da Guerra das Estrelas. Os invasores não paravam de provocar o esforçado lutador, defensor da Paz dos Homens – de todos, mesmo que alguns de mais Boa Vontade que outros – no planeta Terra.
            Aproveitei o largo espaço à esquerda do concentrado rapazinho, tão largo ainda que deu para pôr também do meu lado esquerdo o livro do “filósofo maldito”, Slavoj Žižek, acerca do atentado do Charlie Hebdo – poucas páginas me faltavam para acabar de ler o tão recente ensaio, que falava de outras invasões e de outras guerras. Ali deixado o livro peguei no jornal que, pouco antes, o meu parceiro de cerveja me deixara. Nesta altura já eu avançava para as notícias das grandes folhas de papel com espírito guerreiro, resolutamente disposto a enfrentar as contendas para que os jornalistas-comandantes me quisessem desafiar. Viessem os inimigos invasores, estaria pronto para eles, mesmo que o meu vizinho de banco, ocupado que estava com outros invasores inimigos, não pudesse ajudar-me. Na verdade, nem uma vez o defensor da Terra levantou os olhos na minha direcção; nem noutra direcção qualquer.
            Não passou muito tempo até constatar que as aparências mais uma vez me tinham enganado: a composição do Metro chegou-se pelo lado em que eu estava, não pelo lado em que, pela densidade de pessoas que o ocupavam, era praticamente segura a dedução de que esse era o lado certo.
            Mesmo ali à minha frente abriu-se a porta de uma das carruagens. Assim ela abriu, assim eu entrei, com essa ligeireza, a antecipar-me às densas pessoas, um lugar sentado ficaria garantido. Entretanto, o meu parceiro de banco não se mexeu, manteve-se todo entregue à defesa da Terra. Igualzinho ao que estava quando entrei na estação e me dei conta dele.
            Já dentro da carruagem, sentado no lugar que escolhi entre a abundância deles, olhei pela janela, ficara com uma curiosidade em relação ao rapazinho: esperaria ainda alguém, ou estava apenas completamente absorto na luta para salvar a Terra?
O meu ângulo de visão não me deixava ver senão a parte de cima do encosto do banco, para enxergar o que ele seguraria ainda nas mãos teria de forçar a postura do tronco, elevá-lo, para ganhar maior ângulo de visão, de cima para baixo; mas, verdadeiramente, não tinha razão nem motivação para o fazer. Já me preparava para voltar à leitura quando vi, pela primeira vez, o moço levantar os olhos da absorvente máquina, que não parava de debitar extra-terrestres.
Olhou para a sua esquerda, o ângulo de visão que me parecia ver sair dos seus olhos, ligeiramente virados para baixo, levariam o foco da sua atenção para uma zona ainda dentro do espaço do assento do banco que até havia bem pouco tinha sido dele e meu. A seguir, levantou os olhos e fez uma varridela na horizontal da posição natural dos olhos, da esquerda para a direita; só a cabeça parecia mexer, até os braços pareciam quietos. Percorrido um ângulo de 180 graus, os olhos do guerreiro rapaz, extremados à sua direita, iniciaram o regresso à posição normal, continuando, entretanto, a explorar o espaço que percorriam; claramente pararam a olhar para dentro da carruagem onde eu estava, pela porta por onde eu entrara.
Precisamente nessa altura, ainda antes de tomar consciência do que assim me mobilizava, e que só a seguir se me clarificou no pensamento, saltei do banco onde me tinha pressurosamente acomodado e corri a apanhar o livro do maldito filósofo. Sim, fora isso mesmo: distraído com a leitura do jornal, tentando desembrulhar-me com os meus circunstanciais extra-terrestres, artigo a artigo, deixara, inconscientemente, o desagradável tema do Charlie Hebdo ali no banco, abandonado, quiçá, desprezado. Note-se bem que eu não tinha visto ainda o livro quando saltei do cómodo banco da carruagem, mas toda aquela sequência no comportamento do defensor da Paz na Terra só poderia indicar o que eu acabei depois por consciencializar.
Peguei no livro e o heróico guerreiro seguiu toda a sequência do meu repentismo. Acabámos por nos olhar um ao outro, a primeira vez naquele tempo todo. Exibi-lhe o polegar direito, naquele gesto em que queremos dizer que está tudo bem e ele ainda me ouviu a deixar-lhe um cordial obrigado. Sorrimos um para o outro, por um momento fomos aliados; ou melhor, por um instante eu fui um dos Homens de Boa Vontade protegido pelo valoroso defensor do planeta Terra!

Sim, pelo menos desta vez, na mente do jovem que só reconhecerei se o voltar a ver ali, sentado no mesmo banco, na mesma empenhada luta entre o Bem e o Mal; dizia eu, pelo menos desta vez, um sentimento de bem fazer se ligou à imaginária fantasia lutadora de quem cresce à procura do que é capaz e do que vale a pena a pena fazer.