O
heróico defensor dos habitantes do planeta Terra anda de metro em Lisboa,
em Lisboa dia 4 de Março de 2015, quarta-feira
http://www.moddb.com/groups/empire-at-war/downloads/ save-games-star-wars-the-force-unleashed-use |
Do
lado esquerdo, os bancos estavam todos ocupados, e havia muitas pessoas de pé.
A composição não deveria tardar, e deveria aparecer por aquele lado; mas eu
queria sentar-me a ler. Do lado direito do duplo cais um dos bancos tinha apenas
um utilizador: um jovem, de 13 ou 14 anos, talvez. Os dedos do rapaz
metralhavam avidamente as teclas laterais de um desses já tão vulgarizados aparelhos
de jogos digitais, que a gente agora vê sempre quando se depara, nos espaços
públicos, com gente jovem – bastam dois rapazinhos, quase seguramente um deles
estará vociferando silenciosas imprecações contra jogadores de futebóis adversários,
inimigos de outros exércitos, ou invasores do Espaço. Seria o caso desta vez,
num brevíssimo inclinar do aparelho que tinha nas mãos, o rapaz deixou-me ver o
que parecia ser um cenário da Guerra das Estrelas. Os invasores não paravam de
provocar o esforçado lutador, defensor da Paz dos Homens – de todos, mesmo que
alguns de mais Boa Vontade que outros – no planeta Terra.
Aproveitei
o largo espaço à esquerda do concentrado rapazinho, tão largo ainda que deu
para pôr também do meu lado esquerdo o livro do “filósofo maldito”, Slavoj
Žižek, acerca do atentado do Charlie Hebdo – poucas páginas me faltavam para
acabar de ler o tão recente ensaio, que falava de outras invasões e de outras
guerras. Ali deixado o livro peguei no jornal que, pouco antes, o meu parceiro
de cerveja me deixara. Nesta altura já eu avançava para as notícias das grandes
folhas de papel com espírito guerreiro, resolutamente disposto a enfrentar as
contendas para que os jornalistas-comandantes me quisessem desafiar. Viessem os
inimigos invasores, estaria pronto para eles, mesmo que o meu vizinho de banco,
ocupado que estava com outros invasores inimigos, não pudesse ajudar-me. Na
verdade, nem uma vez o defensor da Terra levantou os olhos na minha direcção;
nem noutra direcção qualquer.
Não
passou muito tempo até constatar que as aparências mais uma vez me tinham
enganado: a composição do Metro chegou-se pelo lado em que eu estava, não pelo
lado em que, pela densidade de pessoas que o ocupavam, era praticamente segura
a dedução de que esse era o lado certo.
Mesmo
ali à minha frente abriu-se a porta de uma das carruagens. Assim ela abriu,
assim eu entrei, com essa ligeireza, a antecipar-me às densas pessoas, um lugar
sentado ficaria garantido. Entretanto, o meu parceiro de banco não se mexeu,
manteve-se todo entregue à defesa da Terra. Igualzinho ao que estava quando entrei
na estação e me dei conta dele.
Já dentro
da carruagem, sentado no lugar que escolhi entre a abundância deles, olhei pela
janela, ficara com uma curiosidade em relação ao rapazinho: esperaria ainda
alguém, ou estava apenas completamente absorto na luta para salvar a Terra?
O meu ângulo de visão não
me deixava ver senão a parte de cima do encosto do banco, para enxergar o que
ele seguraria ainda nas mãos teria de forçar a postura do tronco, elevá-lo,
para ganhar maior ângulo de visão, de cima para baixo; mas, verdadeiramente,
não tinha razão nem motivação para o fazer. Já me preparava para voltar à
leitura quando vi, pela primeira vez, o moço levantar os olhos da absorvente
máquina, que não parava de debitar extra-terrestres.
Olhou para a sua
esquerda, o ângulo de visão que me parecia ver sair dos seus olhos,
ligeiramente virados para baixo, levariam o foco da sua atenção para uma zona
ainda dentro do espaço do assento do banco que até havia bem pouco tinha sido
dele e meu. A seguir, levantou os olhos e fez uma varridela na horizontal da
posição natural dos olhos, da esquerda para a direita; só a cabeça parecia
mexer, até os braços pareciam quietos. Percorrido um ângulo de 180 graus, os
olhos do guerreiro rapaz, extremados à sua direita, iniciaram o regresso à
posição normal, continuando, entretanto, a explorar o espaço que percorriam;
claramente pararam a olhar para dentro da carruagem onde eu estava, pela porta
por onde eu entrara.
Precisamente nessa
altura, ainda antes de tomar consciência do que assim me mobilizava, e que só a
seguir se me clarificou no pensamento, saltei do banco onde me tinha
pressurosamente acomodado e corri a apanhar o livro do maldito filósofo. Sim,
fora isso mesmo: distraído com a leitura do jornal, tentando desembrulhar-me
com os meus circunstanciais extra-terrestres, artigo a artigo, deixara,
inconscientemente, o desagradável tema do Charlie Hebdo ali no banco, abandonado,
quiçá, desprezado. Note-se bem que eu não tinha visto ainda o livro quando
saltei do cómodo banco da carruagem, mas toda aquela sequência no comportamento
do defensor da Paz na Terra só poderia indicar o que eu acabei depois por
consciencializar.
Peguei no livro e o
heróico guerreiro seguiu toda a sequência do meu repentismo. Acabámos por nos
olhar um ao outro, a primeira vez naquele tempo todo. Exibi-lhe o polegar
direito, naquele gesto em que queremos dizer que está tudo bem e ele ainda me
ouviu a deixar-lhe um cordial obrigado. Sorrimos um para o outro, por um
momento fomos aliados; ou melhor, por um instante eu fui um dos Homens de Boa
Vontade protegido pelo valoroso defensor do planeta Terra!
Sim, pelo menos desta
vez, na mente do jovem que só reconhecerei se o voltar a ver ali, sentado no
mesmo banco, na mesma empenhada luta entre o Bem e o Mal; dizia eu, pelo menos
desta vez, um sentimento de bem fazer se ligou à imaginária fantasia lutadora
de quem cresce à procura do que é capaz e do que vale a pena a pena fazer.
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