sábado, 28 de março de 2015

O heróico defensor dos habitantes do planeta Terra anda de metro em Lisboa

O heróico defensor dos habitantes do planeta Terra anda de metro em Lisboa,
em Lisboa dia 4 de Março de 2015, quarta-feira

http://www.moddb.com/groups/empire-at-war/downloads/
save-games-star-wars-the-force-unleashed-use
            Pouco passava das seis da tarde. Tinha acabado de deixar o encontro do British Bar das quartas-feiras e voltava para casa como de costume: de metropolitano, na estação do Cais do Sodré. Já lá em baixo, a chegar ao cais, a dúvida de sempre: a composição do Metro vai aparecer do lado direito, ou do lado esquerdo?...
            Do lado esquerdo, os bancos estavam todos ocupados, e havia muitas pessoas de pé. A composição não deveria tardar, e deveria aparecer por aquele lado; mas eu queria sentar-me a ler. Do lado direito do duplo cais um dos bancos tinha apenas um utilizador: um jovem, de 13 ou 14 anos, talvez. Os dedos do rapaz metralhavam avidamente as teclas laterais de um desses já tão vulgarizados aparelhos de jogos digitais, que a gente agora vê sempre quando se depara, nos espaços públicos, com gente jovem – bastam dois rapazinhos, quase seguramente um deles estará vociferando silenciosas imprecações contra jogadores de futebóis adversários, inimigos de outros exércitos, ou invasores do Espaço. Seria o caso desta vez, num brevíssimo inclinar do aparelho que tinha nas mãos, o rapaz deixou-me ver o que parecia ser um cenário da Guerra das Estrelas. Os invasores não paravam de provocar o esforçado lutador, defensor da Paz dos Homens – de todos, mesmo que alguns de mais Boa Vontade que outros – no planeta Terra.
            Aproveitei o largo espaço à esquerda do concentrado rapazinho, tão largo ainda que deu para pôr também do meu lado esquerdo o livro do “filósofo maldito”, Slavoj Žižek, acerca do atentado do Charlie Hebdo – poucas páginas me faltavam para acabar de ler o tão recente ensaio, que falava de outras invasões e de outras guerras. Ali deixado o livro peguei no jornal que, pouco antes, o meu parceiro de cerveja me deixara. Nesta altura já eu avançava para as notícias das grandes folhas de papel com espírito guerreiro, resolutamente disposto a enfrentar as contendas para que os jornalistas-comandantes me quisessem desafiar. Viessem os inimigos invasores, estaria pronto para eles, mesmo que o meu vizinho de banco, ocupado que estava com outros invasores inimigos, não pudesse ajudar-me. Na verdade, nem uma vez o defensor da Terra levantou os olhos na minha direcção; nem noutra direcção qualquer.
            Não passou muito tempo até constatar que as aparências mais uma vez me tinham enganado: a composição do Metro chegou-se pelo lado em que eu estava, não pelo lado em que, pela densidade de pessoas que o ocupavam, era praticamente segura a dedução de que esse era o lado certo.
            Mesmo ali à minha frente abriu-se a porta de uma das carruagens. Assim ela abriu, assim eu entrei, com essa ligeireza, a antecipar-me às densas pessoas, um lugar sentado ficaria garantido. Entretanto, o meu parceiro de banco não se mexeu, manteve-se todo entregue à defesa da Terra. Igualzinho ao que estava quando entrei na estação e me dei conta dele.
            Já dentro da carruagem, sentado no lugar que escolhi entre a abundância deles, olhei pela janela, ficara com uma curiosidade em relação ao rapazinho: esperaria ainda alguém, ou estava apenas completamente absorto na luta para salvar a Terra?
O meu ângulo de visão não me deixava ver senão a parte de cima do encosto do banco, para enxergar o que ele seguraria ainda nas mãos teria de forçar a postura do tronco, elevá-lo, para ganhar maior ângulo de visão, de cima para baixo; mas, verdadeiramente, não tinha razão nem motivação para o fazer. Já me preparava para voltar à leitura quando vi, pela primeira vez, o moço levantar os olhos da absorvente máquina, que não parava de debitar extra-terrestres.
Olhou para a sua esquerda, o ângulo de visão que me parecia ver sair dos seus olhos, ligeiramente virados para baixo, levariam o foco da sua atenção para uma zona ainda dentro do espaço do assento do banco que até havia bem pouco tinha sido dele e meu. A seguir, levantou os olhos e fez uma varridela na horizontal da posição natural dos olhos, da esquerda para a direita; só a cabeça parecia mexer, até os braços pareciam quietos. Percorrido um ângulo de 180 graus, os olhos do guerreiro rapaz, extremados à sua direita, iniciaram o regresso à posição normal, continuando, entretanto, a explorar o espaço que percorriam; claramente pararam a olhar para dentro da carruagem onde eu estava, pela porta por onde eu entrara.
Precisamente nessa altura, ainda antes de tomar consciência do que assim me mobilizava, e que só a seguir se me clarificou no pensamento, saltei do banco onde me tinha pressurosamente acomodado e corri a apanhar o livro do maldito filósofo. Sim, fora isso mesmo: distraído com a leitura do jornal, tentando desembrulhar-me com os meus circunstanciais extra-terrestres, artigo a artigo, deixara, inconscientemente, o desagradável tema do Charlie Hebdo ali no banco, abandonado, quiçá, desprezado. Note-se bem que eu não tinha visto ainda o livro quando saltei do cómodo banco da carruagem, mas toda aquela sequência no comportamento do defensor da Paz na Terra só poderia indicar o que eu acabei depois por consciencializar.
Peguei no livro e o heróico guerreiro seguiu toda a sequência do meu repentismo. Acabámos por nos olhar um ao outro, a primeira vez naquele tempo todo. Exibi-lhe o polegar direito, naquele gesto em que queremos dizer que está tudo bem e ele ainda me ouviu a deixar-lhe um cordial obrigado. Sorrimos um para o outro, por um momento fomos aliados; ou melhor, por um instante eu fui um dos Homens de Boa Vontade protegido pelo valoroso defensor do planeta Terra!

Sim, pelo menos desta vez, na mente do jovem que só reconhecerei se o voltar a ver ali, sentado no mesmo banco, na mesma empenhada luta entre o Bem e o Mal; dizia eu, pelo menos desta vez, um sentimento de bem fazer se ligou à imaginária fantasia lutadora de quem cresce à procura do que é capaz e do que vale a pena a pena fazer.

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