Imaginando-me a falar com João
dos Santos, ou a pensar ao lado dele
A FORÇA DAS
PALAVRAS DE JOÃO DOS SANTOS
http://ocantodaines.blogspot.pt/2013/04/amigos-dos-avos.html |
O dr. João dos Santos apreciava
muito Fernando Pessoa, por mais do que uma vez, nas aulas, ele falou aos alunos
do curso de Psicologia da Faculdade de Psicologia de Lisboa, nas palavras
escritas pelo extraordinário poeta. O poeta era para o meu mestre um autor de
cabeceira. Nunca eu fiquei com a ideia de que o dr. João dos Santos estivesse a
usar esta expressão oral em sentido estrito, no sentido de se ler quando a
pessoa se acaba de deitar na cama, à hora do descanso da noite. Fiquei sempre
mais com a ideia de que era um autor que o acompanhava frequentemente, em horas
em que o cansaço pede, e as ocupações permitem, o recobro da atenção, do fluir do pensamento e do discurso falado, feitos,
pensamento e discurso, de palavras que esclarecem sentidos para o Próprio e
lhes dão formas comunicáveis para o Outro, que, na ação psicoterapêutica habitualmente é alguém que vem
ao encontro do terapeuta pedindo ajuda por intermédio da palavra.
“Quem
não vê bem uma palavra não vê bem uma alma”, escreveu um dia Fernando
Pessoa. Penso que era esse olhar profundo que o dr. João dos Santos procurava
nas palavras de Fernando Pessoa, que foi quem, precisamente, escreveu, por vontade e por
génio, em verso e em texto, palavras com esse sentido profundo.
Todos sabemos – o dr. João dos
Santos também o disse aos alunos – que Fernando Pessoa designou o Padre António
Vieira o imperador da Língua Portuguesa. Quem conhece os escritos do Padre
António Viera percebe porque pensa Fernando Pessoa assim, mesmo que não
concorde. Ora, no meu entender e penso que também no entender do dr. João dos
Santos, Fernando Pessoa é o grande sucessor de António Vieira na forma como
trata as palavras e as organiza em versos e frases de sentidos rigorosos,
precisos e claros.
O dr. João dos Santos tem
seguramente consciência do que Fernando Pessoa diz sobre a ideia de palavra e
do valor fundamental que ela encerra. Escreve Fernando Pessoa:
A palavra falada é um fenómeno natural; a palavra escrita é um fenómeno
cultural. O homem natural pode viver perfeitamente sem ler nem escrever. Não o
pode o homem a que chamamos civilizado: por isso, como disse, a palavra escrita
é um fenómeno cultural, não da natureza mas da civilização, da qual a cultura é
a essência e o esteio.
As palavras não nascem com os
indivíduos. Todos os indivíduos, assim que nascem, tornam-se membros de grupos
humanos que lhes trazem palavras que, aos poucos, vão sendo, como coisa
natural, a maneira de expressar, para eles mesmos e para os outros, “tenho fome”, ou “o boneco, dá”, ou “Mãe!”
Pode-se mesmo dizer que o universo relacional da criança – a criança de
desenvolvimento saudável normal – não existe sem as palavras; e quando o bebé
“pensa”, reconhece o que está a sentir, fá-lo com as palavras que começou a
receber logo que nasceu através das pessoas que existem à sua volta. E mesmo
que tenha começado por pensar ou reconhecer com imagens o que sentiu, as
representações mentais, para serem comunicáveis seguem habitualmente o caminho
da sua representação por palavras.
De tudo isto resulta a importância
que o dr. João dos Santos atribui à palavra, e a que também não é certamente indiferente
o que ele aprendeu e conversou com Henri Wallon e Serge Lebovici.
A palavra é, na verdade… quase… um fenómeno
natural. Em rigor, as palavras são qualquer coisa já para além da simples
natureza dos sons articulados pelo aparelho fonador do ser humano. Até por
volta, em geral, dos dois anos de idade, a criança sente, e toma consciência
disso, que quer dizer Não. Antes,
ainda sem saber falar, a criança aprendeu a abanar a cabeça para mostrar ao seu
interlocutor que o que sente é “Não!”;
articula sons, gritos, choros, gestos e só mais tarde aprende a dizer não, ou no, ou non, ou…, ou…, ou…
Ora bem, para além da condição
natural ou cultural da palavra, o dr. João dos Santos tem o entendimento claro
da sua importância enquanto veículo de significados; mais, a palavra é veículo
e é corpo de significados. Por exemplo, quando alguém diz que está um dia lindo de morrer, o sentido
veiculado pelas palavras é outra coisa que está para além do corpo das palavras
que compõem a expressão, centrada à volta da palavra “morrer”, a qual, tendo
corpo para uma coisa, neste caso veicula o significado precisamente do seu
oposto: o que é lindo é viver num dia assim, de tanta luz!
A mim parece-me que quando João dos
Santos diz, por exemplo, que “a
instabilidade é a procura da estabilidade”, ou que “o xixi na cama é um sonho com o corpo”, ele não está a fazer jogos
de palavras; isso sim, ele está a usar as palavras em sentidos ou significados
diretos, claros, que os interlocutores (quase sempre as crianças – ou porque
são crianças mesmo, ou porque é às crianças que estão nos adultos que João dos Santos se dirige) entendem com
precisão e não com sentidos ou significados simbólicos diferentes que podem ser
captados ou entendidos diferentemente por quem diz as palavras e por quem as
ouve.
É esse rigor próprio, específico, da
palavra e, por extensão, da frase que, no meu entender, João dos Santos vai
procurar, vai ler e reler em Fernando Pessoa. O poeta e escritor tem esse dom,
o de nos mostrar no que escreve a capacidade que as palavras têm de dizerem o
que as pessoas sentem; e também de sentirem, através das palavras, o que, sem
elas, experimentam no corpo, nos afetos e na mente, mas sem conseguirem
reconhecer que sentem.
Quando João dos Santos diz que o adulto pode ajudar a criança a simbolizar, entendo, em sentido lato, que ele conta com a palavra como o meio ou instrumento privilegiado para o fazer; e fazer outra coisa mais do que interpretar ou dar significado às manifestações comportamentais e aos sintomas das crianças. O desafio para o terapeuta (e para o pedagogo curador) é encontrar as palavras que a criança ainda não encontrou para os significados que já tem dentro de si e para as coisas que já sente mas ainda não consegue compreender. Acredito que António Damásio, que nos põe a pensar nas emoções como as formas primitivas (ou mesmo primordiais?) de pensamento, compreenderá o que estou a dizer.
Sabe-se, hoje em dia, que, pelo menos em certos casos, é possível induzir numa pessoa uma emoção ou um sentimento pela simples estimulação elétrica de todos os músculos (e pele) que participam na configuração da expressão facial que a vivência pessoal de uma emoção – por exemplo, a melancolia – produz. Quer dizer, quem nunca sentiu melancolia pode ser induzido a senti-la por simples estimulação elétrica exterior, sem que esse sentimento seja resultante de qualquer experiência relacional concreta anterior indutora.
Sabe-se, hoje em dia, que, pelo menos em certos casos, é possível induzir numa pessoa uma emoção ou um sentimento pela simples estimulação elétrica de todos os músculos (e pele) que participam na configuração da expressão facial que a vivência pessoal de uma emoção – por exemplo, a melancolia – produz. Quer dizer, quem nunca sentiu melancolia pode ser induzido a senti-la por simples estimulação elétrica exterior, sem que esse sentimento seja resultante de qualquer experiência relacional concreta anterior indutora.
Com as palavras, tantas vezes
acontece o seguinte fenómeno, que, se calhar, é o que está no cerne das
perturbações psicológicas: as pessoas que não estão bem, que não se sentem bem,
não abandonam o seu sintoma – que é sempre um sinal interno que reclama ser
entendido (quem sabe?, até mais pelos outros do que por elas mesmas) -, não abandonam o seu sofrimento psicológico porque não sabem ou não conseguem encontrar a palavra que
veicula ou dá corpo à experiência vital – afetiva ou emocional – do bloqueio ou
do sofrimento psicológico que tal sintoma denuncia. O dr. João dos Santos é
mestre notável nesta arte de encontrar as palavras que desbloqueiam o que está
num impasse, ou que aliviam o sofrimento porque permitem que ele se transforme
noutras coisas mais suportáveis; e isso faz-se com o poder das palavras.
Palavras que são ditas ou que precisam apenas de serem pensadas.
“A
linguagem fez-se para que nos sirvamos dela, não para que a sirvamos a ela.” disse ainda Fernando Pessoa. É esse jeito único, no momento de estar com as
crianças, de se servir das palavras, que o dr. João dos Santos exibe com
mestria. Tranquila, serena, mas consistente mestria.
O terapeuta que vê bem a palavra,
ajuda quem o procura a ver bem a palavra que precisa; e quem vê bem a palavra
que precisa vê bem a alma que é a sua e a alma em quem se espelha, que é a do
terapeuta.
Também ao educador cabe ajudar o
aluno a servir-se da palavra. João dos Santos diz que é mais importante aquilo que se é do que aquilo que se sabe. Talvez
o ser humano tenha inventado uma forma de existência em que só se é através da
palavra. Por isso a palavra é mais importante para o que se é do que para o que
se sabe.
Fernando
Pinto
21 de
junho de 2013
(este texto foi escrito depois
de rever o dr. João dos Santos no documentário Photomaton a ele dedicado, visionado no dia 20 de Junho, no Hotel 3K Europa em Lisboa, no âmbito da iniciativa da Sociedade Portuguesa de Psicanálise, UM SERÃO NA COMPANHIA DE JOÃO DOS SANTOS)
adorei ler as suas palavras. Obrigada!
ResponderEliminarOlá, Mafalda! Peço desculpa de só hoje responder. Não me apercebi do seu comentário...
EliminarObrigado pelo que diz! João dos Santos é, para mim, sempre, uma figura muito inspiradora e aconchegante. Bjnhs!