terça-feira, 25 de junho de 2013

“Abô”, disse ele.

- Abô!...
                O meu neto hoje chamou-me, pela primeira vez, avô. “Abô”, disse ele.

                Foi o pai, o meu filho, que o incentivou a dizer esta nova palavra do seu vocabulário. O meu neto aderiu imediatamente, e disse “abô” uma, duas, três vezes; até eu lhe perder a conta.
                O que o Déon fez é especialmente extraordinário!... O pai, inspirado por um pensamento súbito, não premeditado, brotado da fonte sábia dos afetos amadurecidos, foi autor de uma notável experiência humana.
                O Déon nasceu em Portugal mas não é português. O pai do meu neto não é meu filho, tal como a mãe do Déon. O Déon tem dois avós kosovares, que adoram o seu lindo neto. O Déon gosta muito dos avós, que anseiam de saudades pelo neto de quem eu sou avô.
                O Déon tem pouco mais de 2 anos, e não fala português. Vive com os pais na Suíça, fala a língua materna dos pais. Se todas as crianças tivessem um pai e uma mãe como o Déon tem, todo as as crianças do Mundo seriam muito felizes!
                Eu não estou com o meu neto desde novembro passado, quando ele foi viver para a Suíça. Os pais moravam em Odivelas, foram para Zurique procurar melhor vida para eles e para a família que estão a criar.
                O Samir, o pai do meu neto, tem já a cidadania portuguesa há algum tempo. Conheci-o em 1999, depois de ter sido convidado  - sem que ainda hoje saiba quem e por que razão fez que o convite me fosse feito na escola onde ainda leciono  – a ir trabalhar lá para cima, em Entre-os-Rios, com um grupo de refugiados, que tinha acabado de chegar a Portugal, protegendo-se da guerra do Kosovo. Não fui. Não fui mas indiquei quem fosse e garanti a orientação sociopedagógica do trabalho.
                Quando o grupo de cidadãos kosovares voltou para a sua terra, o Samir estava cheio de vontade de continuar em Portugal. Pelos laços criados e porque queria fazer pela sua vida; a sua terra não lhe oferecia perspetivas de desenvolvimento de uma profissão. Mas ele tinha mesmo de voltar a Prishtina, a lei dos refugiados de guerra não lhe dava outras hipóteses naquela altura. O melhor que consegui fazer foi prometer-lhe que tudo tentaria para que ele voltasse a Portugal. Pedi-lhe um ano para cumprir a promessa. Cumpri a promessa dentro do tempo que lhe pedi. Entre a promessa e o cumprimento dela fui ao Kosovo visitá-lo, à família e aos outros concidadãos que conheci em Entre-os-Rios e na Póvoa do Varzim, para onde, entretanto, se tinham mudado a meio do seu tempo em Portugal.
                Passaram cerca de 12 anos entre o tempo de o Samir voltar de Prishtina a Lisboa e ir de Lisboa a Zurich. Foi tempo de vida intensa, de um jovem que queria organizar a sua vida, enfrentou e venceu problemas de saúde delicados; foi desafiado por comportamentos e valores diferentes dos da sua cultura familiar e, sendo fiel aos seus, criou um círculo de relações humanas extraordinário à sua volta. Foi ao Kosovo a espaços e de lá trouxe uma muito bonita jovem como sua esposa.
                Logo no início de abril de 2011 nasceu o Déon. Alguns meses antes, eu, como tantas vezes o fizera já, tinha reagido instintivamente à vibração do telemóvel e levara a mão ao bolso. Era o sinal de uma mensagem acabada de chegar. A mensagem dizia: “Vais ser avô”. A mensagem era do Samir. Liguei-lhe imediatamente, pai e mãe tinham acabado de ter a confirmação da gravidez da Arta. Algumas semanas depois o Samir mandou-me outra mensagem: “Vais ser avô de um neto”. Ainda não apaguei essas mensagens do telemóvel.
                O nascimento do Déon foi uma festa discreta. Faltavam os avós, os irmãos, os tios, os primos, as pessoas todas que gostamos de ter à nossa volta. Guardei muitas fotografias das primeiras 24 horas do bebé, e fiz dois ou três pequenos filmes; a minha preocupação era mandar imediatamente algumas imagens para os familiares no Kosovo. E passei a usar especialmente um desses filmes nas minhas aulas de Psicologia para falar da maneira como a comunicação humana acontece logo desde esses primeiros momentos, com participação e envolvimento muito ativo do bebé. Tudo correu bem durante o primeiro mês de vida. Nessa altura, uma volta inesperada na saúde do bebé pôs-nos aos três – mãe, pai e eu – na mais longa e mais angustiante noite das nossas vidas. O bebé ficou muito perto de morrer. A cirurgiã-pediatra pediu-nos para tomarmos a decisão que para mim era bem mais difícil que todas as outras que alguma vez tive de tomar desde que me conheço como sujeito que pensa, escolhe e decide. Salvámos o bebé, é agora um “pilinhas” encantador, transborda vitalidade e alegria.
                O Déon prodigaliza saúde, vitalidade e alegria, só que agora, como já disse, em Zurique e não mais em Odivelas ou Lisboa. A primeira vez que ele me viu pela webcam no Facebook fez uma cara de espanto, e ficou parado que nem estátua. A seguir, eu vejo-o voltar para trás, a correr e a desaparecer da área de visão da imagem ao computador. Pouco depois – que simbolismo tocante! – regressa, trazendo um enorme autocarro de turismo em ambas as mãos. Era um enorme autocarro de brincar! Pára bem à frente do computador, fixa o olhar em mim e estende, ainda com ambas as mãos, o autocarro! A seguir, sempre espontaneamente, baixa a cabeça, com ar triste, faz beicinho, tem um ar suplicante. Olha-me outra vez. Parece que me pede, se calhar, o que eu quero imaginar que ele me está a pedir: que apanhe o autocarro e vá para ao pé deles, brincar com ele.
                Depois dessa interação facebookiana, encontrei-me já mais algumas vezes com o Déon na Internet. É cada vez mais visível na vozita doce do menino o domínio da língua dos pais e dos tios com quem ele vive lá na Suíça.
                Mas hoje, o vocábulo novo, que o pai lhe falou com o afeto da língua materna foi “avô”. E foi essa palavra, assimilada com o jeito das palavras da língua materna, que o Déon me dirigiu na forma “abô”. E depois repetiu, repetiu, repetiu.
                Foi este precisamente o génio sábio, intuído, do meu filho kosovar, o Samir. Eu nunca ocuparei o lugar dos avós (os “avôs”) materno e paterno. Não é isso que está em causa, não é essa sequer a natureza da dinâmica relacional em questão. Já disse lá mais para trás neste texto que os avós adoram o neto e o neto adora os avós. Eles serão "avô’s" na língua em que todas as crianças kosovares chamam avô aos progenitores masculinos do seu pai e da sua mãe. E eu serei o “abô”, o único que o Déon pronunciará desta maneira. O “abô” do Déon, na sua palavra dita será um vocábulo identificador de alguém – único, repito – que é afetivamente significativo para ele, bebé, como são afetivamente únicos aqueles a quem ele chama mãe, pai, tio, avô, avó…
                São o pai e a mãe que dão ao filho o nome, a palavra, que identifica os outros e as coisas; e na carga emocional que os pais transportam nessas palavras, aos poucos, essas palavras são ditas pela criança carregadas de emoções e sentimentos próprios; laços afetivos e sentido de identidade pessoal.
                O Déon captou do pai, uma das metades essenciais do seu mundo relacional – e praticamente mais nada existe na vida de uma criança desta idade para além deste mundo; o mundo que será a matriz de tudo o mais que lhe surgirá daqui para a frente, seja o que seja, traga que outros mundos lhe traga –, captou das modulações de voz a que a criança é sensível, como só são minuciosamente sensíveis as crianças nesta idade (é, na verdade, uma competência comportamental fascinante ainda com muito por explicar pelos especialistas comportamentais destes fenómenos), o carinho, a confiança, a segurança que vêm com a palavra que o pai lhe dirigiu e estes sentires ou sentimentos passarão a fazer sempre parte da natureza real e simbólica da palavra. “Avô”.
                Os avós kosovares do Déon sentirão o que a sua natureza humana, cultura familiar e cultura social de origem lhes propõem que sintam quando os netos pronunciam a palavra “avô”, na sua língua materna. Eu sentirei o que a minha cultura me propõe sentir quando um petiz como o Déon me chama “avô”. E ele pronunciará esse vocábulo com o mesmo jeito pessoal como pronunciará, na língua dos seus avós, a palavra “avô”.
                Recebida do pai, a palavra “avô” em português não é entendida como sendo de uma língua diferente da língua materna em que comunica com os pais, em que pensa, em que aprende, em que brinca. É essa palavra natural, maternal, que o Déon me diz quando pronuncia “abô”; e – coisa espantosa! – eu recebo-a com o valor afetivo e cognitivo que a palavra tem na minha língua materna!  Foi esse o ponto de encontro que o Samir, o meu filho que não é meu filho e que deu um neto assim que soube que a sua querida esposa estava grávida, conseguiu hoje num momento de inspiração muito afortunado.
                Fantástico, Samir! Tão grande a generosidade do que me fizeste! Muitos parabéns pela maneira sábia como lidaste connosco - o teu filho e este personagem de bigode que tanta atenção e ação já mereceu dele - e soubeste preservar o lugar próprio de cada um de nós no universo relacional do vosso filho – de mim, do teu pai e do pai da Arta.
                Vá, vai lá, vai passear com o Déon, vai brincar com ele à beira do lindo lago de Zurique. E logo à noite, quando a a hora de deitar chegar, conta uma linda história ao meu neto, para que ele tenha o sono feliz dos anjos! Como se diz, em kosovar, “Era uma vez…”?

Fernando Pinto
Em casa, 25 de junho de 2013

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