- Abô!...
O meu
neto hoje chamou-me, pela primeira vez, avô. “Abô”, disse ele.
Foi o
pai, o meu filho, que o incentivou a dizer esta nova palavra do seu
vocabulário. O meu neto aderiu imediatamente, e disse “abô” uma, duas, três
vezes; até eu lhe perder a conta.
O que o
Déon fez é especialmente extraordinário!... O pai, inspirado por um pensamento
súbito, não premeditado, brotado da fonte sábia dos afetos amadurecidos, foi
autor de uma notável experiência humana.
O Déon
nasceu em Portugal mas não é português. O pai do meu neto não é meu filho, tal
como a mãe do Déon. O Déon tem dois avós kosovares, que adoram o seu lindo
neto. O Déon gosta muito dos avós, que anseiam de saudades pelo neto de quem eu
sou avô.
O Déon
tem pouco mais de 2 anos, e não fala português. Vive com os pais na Suíça, fala
a língua materna dos pais. Se todas as crianças tivessem um pai e uma mãe como
o Déon tem, todo as as crianças do Mundo seriam muito felizes!
Eu não
estou com o meu neto desde novembro passado, quando ele foi viver para a Suíça.
Os pais moravam em Odivelas, foram para Zurique procurar melhor vida para eles
e para a família que estão a criar.
O
Samir, o pai do meu neto, tem já a cidadania portuguesa há algum tempo.
Conheci-o em 1999, depois de ter sido convidado - sem que ainda hoje saiba quem e por que
razão fez que o convite me fosse feito na escola onde ainda leciono – a ir trabalhar lá para cima, em
Entre-os-Rios, com um grupo de
refugiados, que tinha acabado de chegar a Portugal, protegendo-se da guerra do
Kosovo. Não fui. Não fui mas indiquei quem fosse e garanti a orientação
sociopedagógica do trabalho.
Quando
o grupo de cidadãos kosovares voltou para a sua terra, o Samir estava cheio de
vontade de continuar em Portugal. Pelos laços criados e porque queria fazer
pela sua vida; a sua terra não lhe oferecia perspetivas de desenvolvimento de
uma profissão. Mas ele tinha mesmo de voltar a Prishtina, a lei dos refugiados
de guerra não lhe dava outras hipóteses naquela altura. O melhor que consegui
fazer foi prometer-lhe que tudo tentaria para que ele voltasse a Portugal.
Pedi-lhe um ano para cumprir a promessa. Cumpri a promessa dentro do tempo que
lhe pedi. Entre a promessa e o cumprimento dela fui ao Kosovo visitá-lo, à
família e aos outros concidadãos que conheci em Entre-os-Rios e na Póvoa do
Varzim, para onde, entretanto, se tinham mudado a meio do seu tempo em Portugal.
Passaram
cerca de 12 anos entre o tempo de o Samir voltar de Prishtina a Lisboa e ir de
Lisboa a Zurich. Foi tempo de vida intensa, de um jovem que queria organizar a
sua vida, enfrentou e venceu problemas de saúde delicados; foi desafiado por
comportamentos e valores diferentes dos da sua cultura familiar e, sendo fiel
aos seus, criou um círculo de relações humanas extraordinário à sua volta. Foi
ao Kosovo a espaços e de lá trouxe uma muito bonita jovem como sua esposa.
Logo no
início de abril de 2011 nasceu o Déon. Alguns meses antes, eu, como tantas vezes o fizera já, tinha reagido instintivamente
à vibração do telemóvel e levara a mão ao bolso. Era o sinal de uma mensagem
acabada de chegar. A mensagem dizia: “Vais ser avô”. A mensagem era do Samir.
Liguei-lhe imediatamente, pai e mãe tinham acabado de ter a confirmação da
gravidez da Arta. Algumas semanas depois o Samir mandou-me outra mensagem: “Vais ser
avô de um neto”. Ainda não apaguei essas mensagens do telemóvel.
O
nascimento do Déon foi uma festa discreta. Faltavam os avós, os irmãos, os
tios, os primos, as pessoas todas que gostamos de ter à nossa volta. Guardei muitas fotografias das primeiras 24 horas do bebé, e fiz dois ou três pequenos filmes; a minha preocupação era mandar imediatamente algumas imagens para os familiares no Kosovo. E passei a usar especialmente um desses filmes nas minhas aulas de Psicologia para falar da maneira como a comunicação humana acontece logo desde esses primeiros momentos, com participação e envolvimento muito ativo do bebé. Tudo
correu bem durante o primeiro mês de vida. Nessa altura, uma volta inesperada
na saúde do bebé pôs-nos aos três – mãe, pai e eu – na mais longa e mais
angustiante noite das nossas vidas. O bebé ficou muito perto de morrer. A
cirurgiã-pediatra pediu-nos para tomarmos a decisão que para mim era bem mais
difícil que todas as outras que alguma vez tive de tomar desde que me conheço
como sujeito que pensa, escolhe e decide. Salvámos o bebé, é agora um
“pilinhas” encantador, transborda vitalidade e alegria.
O Déon prodigaliza saúde, vitalidade e alegria, só que agora, como já disse, em
Zurique e não mais em Odivelas ou Lisboa. A primeira vez que ele me viu pela webcam no Facebook fez uma cara de
espanto, e ficou parado que nem estátua. A seguir, eu vejo-o voltar para trás, a
correr e a desaparecer da área de visão da imagem ao computador. Pouco depois –
que simbolismo tocante! – regressa, trazendo um enorme autocarro de turismo em
ambas as mãos. Era um enorme autocarro de brincar! Pára bem à frente do computador, fixa o olhar em mim e estende,
ainda com ambas as mãos, o autocarro! A seguir, sempre espontaneamente, baixa a
cabeça, com ar triste, faz beicinho, tem um ar suplicante. Olha-me outra vez.
Parece que me pede, se calhar, o que eu quero imaginar que ele me está a pedir:
que apanhe o autocarro e vá para ao pé deles, brincar com ele.
Depois dessa interação facebookiana, encontrei-me já mais algumas vezes com o Déon na Internet. É cada vez mais visível na vozita
doce do menino o domínio da língua dos pais e dos tios com quem ele vive lá na
Suíça.
Mas
hoje, o vocábulo novo, que o pai lhe falou com o afeto da língua materna foi
“avô”. E foi essa palavra, assimilada com o jeito das palavras da língua
materna, que o Déon me dirigiu na forma “abô”. E depois repetiu, repetiu,
repetiu.
Foi
este precisamente o génio sábio, intuído, do meu filho kosovar, o Samir. Eu
nunca ocuparei o lugar dos avós (os “avôs”) materno e paterno. Não é isso que está em causa, não é essa sequer a natureza da dinâmica relacional em questão. Já disse lá mais para trás neste texto que os avós adoram o neto e o neto adora os avós. Eles serão "avô’s" na língua
em que todas as crianças kosovares chamam avô aos progenitores masculinos do
seu pai e da sua mãe. E eu serei o “abô”, o único que o Déon pronunciará desta
maneira. O “abô” do Déon, na sua palavra dita será um vocábulo identificador de
alguém – único, repito – que é afetivamente significativo para ele, bebé, como
são afetivamente únicos aqueles a quem ele chama mãe, pai, tio, avô, avó…
São o
pai e a mãe que dão ao filho o nome, a palavra, que identifica os outros e as
coisas; e na carga emocional que os pais transportam nessas palavras, aos
poucos, essas palavras são ditas pela criança carregadas de emoções e
sentimentos próprios; laços afetivos e sentido de identidade pessoal.
O Déon
captou do pai, uma das metades essenciais do seu mundo relacional – e
praticamente mais nada existe na vida de uma criança desta idade para além
deste mundo; o mundo que será a matriz de tudo o mais que lhe surgirá daqui
para a frente, seja o que seja, traga que outros mundos lhe traga –, captou das
modulações de voz a que a criança é sensível, como só são minuciosamente
sensíveis as crianças nesta idade (é, na verdade, uma competência comportamental
fascinante ainda com muito por explicar pelos especialistas comportamentais destes fenómenos), o carinho, a confiança, a segurança
que vêm com a palavra que o pai lhe dirigiu e estes sentires ou sentimentos passarão
a fazer sempre parte da natureza real e simbólica da palavra. “Avô”.
Os avós
kosovares do Déon sentirão o que a sua natureza humana, cultura familiar e
cultura social de origem lhes propõem que sintam quando os netos pronunciam a
palavra “avô”, na sua língua materna. Eu sentirei o que a minha cultura me
propõe sentir quando um petiz como o Déon me chama “avô”. E ele pronunciará
esse vocábulo com o mesmo jeito pessoal como pronunciará, na língua dos seus
avós, a palavra “avô”.
Recebida
do pai, a palavra “avô” em português não é entendida como sendo de uma língua
diferente da língua materna em que comunica com os pais, em que pensa, em que
aprende, em que brinca. É essa palavra natural, maternal, que o Déon me diz
quando pronuncia “abô”; e – coisa espantosa! – eu recebo-a com o valor afetivo
e cognitivo que a palavra tem na minha língua materna! Foi esse o ponto de encontro que o Samir, o
meu filho que não é meu filho e que deu um neto assim que soube que a sua
querida esposa estava grávida, conseguiu hoje num momento de inspiração muito
afortunado.
Fantástico,
Samir! Tão grande a generosidade do que me fizeste! Muitos parabéns pela
maneira sábia como lidaste connosco - o teu filho e este personagem de bigode que tanta atenção e ação já mereceu dele - e soubeste preservar o lugar próprio de
cada um de nós no universo relacional do vosso filho – de mim, do teu pai e do
pai da Arta.
Vá, vai
lá, vai passear com o Déon, vai brincar com ele à beira do lindo lago de Zurique. E logo à noite,
quando a a hora de deitar chegar, conta uma linda história ao meu neto, para
que ele tenha o sono feliz dos anjos! Como se diz, em kosovar, “Era uma vez…”?
Fernando Pinto
Em casa, 25 de junho de 2013
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