quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

João dos Santos e a Utopia do Instituto da Criança - 1/12

João dos Santos e a Utopia do Instituto da Criança (1) 1/12

Capítulo 1: As Fronteiras da Ilha da Utopia

«Tel le discours des enfants, l'utopie est une conviction, la nuance vient avec l'âge.» (2)
Assim escreve Boris Cyrulnik, à beira dos 80 anos de idade. Cyrulnik é neuropsiquiatra e Directeur d’Enseignement (3) na Universidade de Toulon. A afirmação é retirada do texto que é a sua contribuição para "L'Atlas des Utopies", edição de 2017, uma publicação conjunta, fora de colecção, das editoras La Vie e Le Monde.
Creio que o eminente estudioso da Psicologia Humana não deixará de ter pensado até que ponto o desejo, para além (ou aquém) da convicção, tem relevância para a construção da utopia. O desejo será da ordem do querer, a convicção da do crer - será isso, então: na concepção deste autor, não basta querer para entrar no reino da Utopia; será preciso também crer.
No dicionário etimológico (4) que é a minha referência básica, José Pedro Machado, escreve:
Figuração da ilha Utopia na obra "Utopia" do humanista
inglês Thomas More, publicada em 1516
Utopia, s. Do lat. humanístico Utopia, nome de país imaginário, palavra criada pelo humanista ingl. Tomás Morus (1480-1535, canonizado em 1935) com os elementos gregos ou, «não», e tópos, «lugar» (vj. top(o)-), isto é, «lugar (que) não (existe)», dada como título a uma das suas obras (em 1516. Séc. XVII, segundo Morais8. (4)
Do ponto de vista conceptual, e sem querer ser exaustivo - afinal, este trabalho não é uma tese, nem ensaia senão discorrer sobre um tema que era muito caro a João dos Santos; e que eu penso conservar toda a importância, vontade e empenho de levar em frente -, pelo que convirá, na minha opinião, fazer uma delimitação, mesmo que grosseira, do conceito de utopia em relação a conceitos que lhe estão próximos, são eles os seguintes: sonho, mito, fantasia, quimera; e delírio.

  • O sonho tem a ver, antes de tudo o mais, com o universo pessoal, da esfera privada; a utopia leva-nos para o universo das relações sociais, da alteridade.
  • O mito remete-nos para o passado, para as origens; a utopia projecta-nos no futuro.
  • A fantasia liberta-se da natureza real das coisas, dos factos e dos processos; a utopia desafia a realidade para que seja diferente, à partida, mais perfeita e mais justa.
  • A quimera, parente da fantasia, é o negativo da utopia - logo à partida, descrê-se da quimera mas a utopia, porque não acreditar nela?
  • O delírio é a doença que tolda o pensamento visionário do entusiástico autor da utopia e a fragiliza.

Quando em 28 de Agosto de 1963, no Lincoln Memorial, em Washington D.C., Martin Luther King, Jr. fez o tão célebre discurso "I Have a Dream", estava ele, em rigor, a falar de um sonho ou de uma utopia? Na verdade, ele não disse "I have an utopia" - e dizer "I have a dream" soa muito mais bonito e aliciante do que dizer "I have an utopia", cativa muito mais facilmente a adesão das outras pessoas. É, no reino da significação das palavras usadas na linguagem corrente, não prisioneiras do rigor dos vocabulários das academias formais do Saber, usam-se assim os nomes, os verbos, os adjectivos e os advérbios: mesclando-se, misturando-se, interpenetrando-se em fronteiras difusas - e esse reino tem toda a legitimidade conceptual, semântica, afectiva e expressiva - numa palavra, comunicativa.
Finalmente, nesta breve introdução, uma palavra sobre a Utopia e as utopias.
A Utopia é, portanto, a ilha ideal de Tomás Morus, é um lugar numa geografia imaginada. Michèle Riot-Sarcey, professora emérita de História Contemporânea na Universidade Paris-8, na mesma colectânea de textos de Boris Cyrulnik, que referi antes, diz que a utopia de Tomás Morus nasceu de um estratagema a que ele, que sabia jogar com os termos gregos, lançou mãos para contornar a censura da sua época. Como diz a autora, «En effet, l'île Utopia est le miroir inversé de l'Angleterre d'Henri VIII.» (5, 6) 
Por seu lado, as utopias serão ideias, tão velhas quanto as aspirações e os sonhos dos homens. Na visão tradicional dos europeus ocidentais estarão, entre as primeiras e mais clássicas, as utopias reformadoras da República de Platão e da Cidade de Deus de Santo Agostinho.
Ah! Falta um pormenor: Tristan Garcia, apresentado como filósofo romancista na colectânea de Cyrulnik e Riot-Sarcey, diz que «Il ne suffit pas de concevoir un autre monde possible, encore faut-il le localizer.» (7, 8)  Em rigor, a ideia de Garcia opõe-se à interpretação estrita da raiz etimológica da Utopia, o nome da ilha de Thomas More: para ele, Garcia, mais do que um não-lugar [nenhures], a Utopia é um lugar que o ouvinte de Rafael (personagem central da Utopia) não consegue, por interferência alheia (providencial?) perceber o nome que a localiza, seja em que mapa seja. (9) 
O pormenor de Garcia não é, no caso da utopia de João dos Santos, de somenos importância; nem a afirmação de Cyrulnik que abre este capítulo: é que a utopia do Instituto da Criança de João dos Santos tem um lugar; e tem a força das convicções que brotam dos desejos infantis - estes, sempre vivos na mente, no sentir e na acção do meu querido Mestre. João dos Santos é Rafael, ou Rafael é João dos Santos? Que a imaginação de cada um traga a satisfatória resposta. (10)

Próximo capítulo: O Instituto da Criança: um sonho, uma acção – uma verdadeira utopia!


________________________
(1) Este trabalho tem como base um outro que apresentei, em Dezembro de 2016, no 
Curso de Extensão de Introdução ao Pensamento Santiano: Estudos sobre a Pedagogia Terapêutica, do Programa de Pós-Graduação em Educação Brasileira, Linha de História da Educação Comparada, da Universidade Federal do Ceará, no Brasil. Esse trabalho tinha como título "A utopia do Instituto da Criança, em que ponto do caminho estamos?". O presente trabalho é, no fundo, o desenvolvimento desse primeiro trabalho que pode, assim, no meu entender, ser considerado um percursor, um trabalho preliminar, sem a ambição que o presente contém - até pelos objectivos que esse outro trabalho visava.
(2) «Tal como o discurso da criança, a utopia é uma convicção, a matização vem com a idade». (tradução livre)
(3) Director de ensino (tradução livre).
(4) José Pedro Machado, "Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, 1977, Livros Horizonte, Lisboa, 3.ª edição, p. 368.
(5) «Com efeito, a ilha Utopia é o espelho invertido da Inglaterra de Henrique VII.» (tradução livre)
(6) "L'Atlas des Utopies", Édition 2017, Groupe La Vie - Le Monde, Paris, p. 20.
(7) «Não basta conceber um outro mundo possível, é preciso localizá-lo.» (tradução livre)
(8) Ibidem, p. 12.
(9) Especialmente delicioso para nós, portugueses, é o pormenor (será que na altura em que foi escrita a Utopia, era mesmo um pormenor?) de ser português o Rafael, aventureiro sábio, que «navegou, não como o marinheiro Palinuro, mas como Ulisses ou, melhor, como Platão» [...] que «se dedicou totalmente à filosofia» [...] e « e estava tão desejoso de ver o mundo, que dividiu o património pelos irmãos (ele é português de nascimento)  seguiu  sua sorte com Américo Vespúcio». (Thomas More, Utopia, 2010, Rés-Editora, Oeiras, p. 13) Ora bem, será que na cabeça de um português a diferença entre o etimológico nenhures e um lugar que não se sabe onde é (ou que se esconde) é significativa e inibidora da activa exploração, ou procura curiosa?
(10) Construo uma outra analogia entre João dos Santos e Rafael Hitlodeu, sustentada no que recordo das conversas que João dos Santos tinha com os seus alunos, ou outras audiências mais alargadas. Costumava ele dizer que, na idade a que chegara, já não trabalhava, já só fazia o que queria, já só fazia coisas interessantes. Também Rafael Hitlodeu, quando Thomas Morus põe Pedro Gilles a insistir com Rafael para que ponha o seu saber ao serviço dos príncipes, que certamente melhorará a sua própria condição pessoal, Rafael responde que isso o levaria a um estilo de vida que repugnaria a sua natureza, e que naquela altura já vivia como queria, o que certamente seria privilégio de pouca gente.



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