terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

JOÃO DOS SANTOS - O DIA DOS NAMORADOS E OS PAIS

«Dic que temos q ' andar culas modas...», escreve no Facebook o meu caro amigo Alfredo Cameirão,
na língua que lhe é natural - tanto que João dos Santos gostava de conversar sobre o valor relacional da língua e da linguagem, a pré-verbal e a verbal!...
O Dia dos Namorados é uma dessas celebrações que, depois de tempos mais ou menos discretos, se tem imposto como moda especialmente agressiva e exigente. Com verdades e fantasias; ilusões e desenganos, que lhes são cada vez mais característicos.
Como escreve a minha querida Verónica, também no Facebook, e também hoje, «Nos tempos em que trabalhei numa perfumaria, este era o dia em que muito se vendia. E alguns me pediam 2 e 3 perfumes iguais para que as namoradas não notassem o perfume umas das outras...»
Para além da espuma, para além das modas de que fala o mirandês do arguto Alfredo, há que haver serenidade bastante para olhar o que a realidade mostra: os números de casos de violência no namoro, e em idades cada vez mais precoces - as estatísticas registam já as ocorrências a partir dos 13 anos de idade... -, continuam a aumentar.
Por uma curiosa e feliz coincidência, de que falei há poucochinho noutro lado (Pensar a paixão, o amar e o namorar com a ajuda de Eça de Queiroz), pude ler, precisamente hoje, um extraordinário texto de João dos Santos sobre o casamento; texto esse que ele escreveu para "O Tempo e o Modo", em resposta a um inquérito composto por três perguntas (1) feitas ao psicanalista, numa edição especial da revista, sobre o casamento. Em Março de 1968.
Todo o texto é de uma permanente riqueza, e arranjarei maneira de o partilhar integralmente, assim que a oportunidade surja; e levá-lo-ei para a escola, aos alunos e aos professores; o meu intento, agora, é trazer imediatamente alguma coisa aos pais. É que a reflexão  do autor, não obstante os 50 anos que passaram, conserva todo o valor.
A citação é um pouco longa, no excerto que quero aqui reproduzir consegui tirar apenas umas poucas linhas; se mais tirasse, muito provavelmente a concepção de João dos Santos apareceria truncada, penso eu.
«O ser humano precisa, para ser gerado, duma célula masculina e doutra feminina, como precisa para ser educado de afecto feminino e de afecto masculino (2) recebido e retribuído em relações simples, quer dizer binárias (mãe-filho) ou triangulares (mãe-filho-pai ou autoridade do clã ou grupo). O preconceito escolar que fez da educação uma técnica pedagógica, levou-nos a esquecer que a criança aprende com a mãe, antes dos três anos, tudo o que há de essencial ao homem: a dominar-se, andar, manipular, falar, etc. O desconhecimento de que o que não se aprende instintivamente com a mãe, não é susceptível de ser aprendido didacticamente, leva muitos jovens a considerar de ânimo leve as suas relações amorosas, o seu casamento, o seu divórcio e o destino dos seus filhos. (3) [...] A chamada Revolução Sexual Americana parece-nos não poder separar-se do progresso económico-social de certas comunidades urbanas e, em particular, da concepção do Homem-consumidor. Cada cidadão tende a ser actualmente um consumidor de produtos e tudo está organizado para que ele tenha tudo à sua disposição para uma vida confortável (4). Cada indivíduo vive para ter conforto e trabalha para o pagar. Inquéritos recentes feitos nos Estados Unidos mostram que a mulher se tornou sexualmente mais activa e exigente e que o homem obcecado pelo seu trabalho se mostra menos interessado e menos capaz na vida íntima do casal. A superficialidade e a versatilidade das relações extra-conjugais podem ser a reacção a este estado de coisas.» (João dos Santos, "O Tempo e o Modo", Extra-colecção, - 2.º Caderno, «O Casamento», Março de 1968, pp. 228-9)
Que tem, então, na minha opinião, este pensamento de João dos Santos a ver com o Dia dos Namorados?
Tem a ver com várias questões, a mais pertinente das quais será esta: como estão os adultos, os pais, a educar os filhos para as relações de namoro? As paixões e os namoros são inerentes à condição afectiva e relacional fundamental do ser humano; envolvem instintos, impulsos e sentimentos que reclamam expansão, mas também domínio e controlo do exacerbamento pessoal ou induzido (por exemplo, por influência dos pares ou da agressiva pressão comercial).
Que condições dão as organizações sociais modernas às mães para que possam realizar satisfatoriamente o seu tão fundamental papel de educadora dos instintos infantis? Que valor é hoje reconhecido aos afectos masculinos na estruturação do temperamento e da personalidade da criança?
E deixamos em branco o assunto do «Urbanismo anárquico que torna frouxas as relações afectivas entre os homens» (p. 229), entendendo-se aqui homens no sentido geral, abrangendo ambos os sexos.


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(1) Pergunta: Recentemente, a revista Observer dedicou um número ao casamento, com o título Seremos nós a última geração que se casa? a) Para além do slogan sensacionalista, que lhe diz a sua experiência de psicanalista sobre a tão falada "crise do casamento"? b) Parece-lhe poder-se dizer que essa crise, nas suas novas proporções, atinge já o nosso país? Em caso afirmativo, quais as suas causas e consequências? c) Parece-lhe legítimo dizer-se que só ao nível institucional as pessoas encontram a segurança afectiva de que necessitam? Pensa que há pessoas que sempre precisarão do casamento?
(2) Seria interessante ouvir João dos Santos sobre as modernas composições familiares que, legalmente, conferem legitimidade a duas mães ou dois pais. Tenho ideia de que João dos Santos não as recusaria, mas certamente daria contributo muito valioso para o pensamento e as atitudes de todos, começando, é claro, pelos próprios pares parentais; e chegando a quem contra eles tantos preconceitos e oposição manifestam. 
(3) O sublinhado é da minha responsabilidade.
(4) Parece-nos esta perspectiva de João dos Santos acerca do conforto muito próxima da que Daniel Lieberman assume, 45 anos depois, na magnífica obra "The Story of Human Body", em que distingue, de forma bem avisada, conforto de bem-estar: «Faz parte da natureza humana deixar que o instinto que procura o conforto se sobreponha à lógica [do bem-estar reclamado pela condição humana natural] (vou de elevador só desta vez), e muitas vezes não reconhecemos que certos confortos diários normais são prejudiciais quando levados ao extremo. O conforto também é rentável. Passamos o dia a ver e a ouvir anúncios de produtos que apelam ao nosso desejo aparentemente insaciável de mais conforto.» (edição portuguesa, 2015, p. 419)

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