quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

O Instituto da Criança: um sonho, uma acção – uma verdadeira utopia!

João dos Santos e a Utopia do Instituto da Criança  2/12

Capítulo 2: O Instituto da Criança: um sonho, uma acção – uma verdadeira utopia! (1)

«Foi nesse clima, para mim penoso, duma pedagogia pré-fabricada, que surgiu a ideia da criação do Instituto da Criança» (2)
http://www.agoravox.fr/tribune-libre/article/rages-et-utopies-d-un-enfant-du-154261
No capítulo anterior, o primeiro deste trabalho, quis deixar clara a ideia do que é uma utopia; e quis, complementarmente, deixar preparada a aceitação de que o projecto do Instituto da Criança que João dos Santos liderou é, com toda a legitimidade, uma utopia.
Neste capítulo quero, então, mostrar alguma coisa sobre a maneira como a ideia do Instituto da Criança tomou a forma de um projecto... oficialmente recusado; mas socialmente, educativamente e terapeuticamente necessário.

Na Primavera de 1957, o dr. João dos Santos participou intensamente numa iniciativa da Juventude Musical Portuguesa, em colaboração com a Sociedade Nacional de Belas-Artes, em que foram realizadas várias conferências, com diversos profissionais e estudiosos, correspondendo o empreendimento, “a uma necessidade de elucidação de problemas relacionados com a educação pela Arte, a formação estética e com o exame da sua viabilidade no ensino escolar”. (2)
No prefácio do livro que cerca de 10 anos depois trouxe a público os textos das conferências, o Professor Delfim Santos afirma:
«Uma constante se pode verificar nas exposições dos autores que testemunham neste livro em defesa da remodelação do ensino em Portugal: a formação do professorado, a criação de um Instituto Superior de Pedagogia. O processo está concluído e a certeza reforçada.» (3) (4)
Será que a “certeza reforçada” de que falava o Professor Delfim Santos participou na ideia que em 1974 tomou a forma do projecto de um Instituto da Criança? Pura especulação da minha parte.
“Deus quer, o homem sonha, a obra nasce.” (5)
É engraçado, querido mestre, tomo consciência de que não tenho claro na minha mente o assunto das convicções religiosas que professava. Quero dizer, tenho ideia de quais seriam, mas não encontro na minha memória encontros entre nós os dois, face a face, em que os seus olhos, os gestos, e a voz espelhassem a proximidade e a distância que tivesse em relação a qualquer credo religioso; e também não me lembro de qualquer crítica, sarcasmo ou expressão de intolerância fosse em relação a que convicção religiosa fosse.
Não sei, sinceramente, o que este deus de Fernando Pessoa – poeta e prosador que o mestre tanto apreciava! – quis ou quer; não tenho dúvidas sobre a intensidade do conhecimento e do afecto com que o senhor sonhava e fazia para que a(s) obra(s) nascesse(m).
Eduardo Galeano, o autor uruguaio, foi um exilado político como João dos Santos também foi. Ambos desejavam o mesmo para os seus países, ambos lutaram contra a opressão dos direitos e das liberdades políticas. Tiveram praticamente o mesmo tempo de vida, ambos nasceram em Setembro, ambos faleceram em Abril; quase trinta anos os separam. Ambos porfiaram, ambos lutaram, ambos sonharam.
Eduardo Galeano também sonhou a utopia. Um dia falou dela assim:
«Voy a leer unas palabritas que tienen que ver con el derecho de soñar, con el derecho al delirio, a partir de algo que me ocurrió en Cartagena de Indias, hace ya algún tiempo, cuando estaba en la universidad, dando una charla, junto con un gran amigo, un director de cine argentino, Fernando Birri, y entonces los muchachos, los estudiantes hacían preguntas, a veces a mí, a veces a él, y le tocó a él la más difícil de todas.
Un estudiante se levantó y preguntó:
«¿Para qué sirve la utopía? », yo lo miré con lástima y digo: «¡Uy!, ¡qué lío, ahora!», y él contestó estupendamente, de la mejor manera. Dijo que la utopía está en el horizonte, y dijo: «Yo sé muy bien que nunca la alcanzaré, que si yo camino diez pasos, ella se alejará diez pasos. Cuanto... cuanto más la busque menos la encontraré, porque ella se va alejando a medida que yo me acerco». Buena pregunta, ¿no?, ¿para qué sirve? Pues la utopía sirve para eso: para caminar.» (6)
O Instituto da Criança é o desenho de um projecto colectivo liderado pelo dr. João dos Santos, aproveitando a oportunidade que as circunstâncias dos tempos que se viviam proporcionava. Corria o ano de 1974, vivia-se o sabor inebriante da Revolução do 25 de Abril:
«Foi uma luta árdua, a de nos convencermos uns aos outros, de que o Instituto era importante e, sobretudo, de convencermos alguns de que não devia ser um organismo centralizador de serviços já existentes, mas uma instituição de defesa dos Direitos da Criança, de captação do sentir da população e de diálogo com os Serviços públicos e Associações privadas. A primeira nota enviada ao ministro [dos Assuntos Sociais] foi devolvida com um despacho de desaprovação. Alice Gentil Martins disse, então, as palavras adequadas à estimulação provocatória do grupo e do ministro: "Se o Instituto da Criança é uma utopia, estamos no bom caminho."» (7)
Dez anos depois do projecto do Instituto da Criança (e dois anos depois da publicação do livro sobre a Utopia do Instituto da Criança), a minha colega Maria Guiomar Lima - fomos alunos do dr. João dos Santos na mesma altura -, jornalista de profissão, entrevistou-o e a certa altura põe-lhe as seguintes perguntas:
- O Instituto da Criança corresponde àquilo que pretendia no livro que escreveu?
- Ah, certamente que não! Eu fiz aquele livrinho, A Caminho da Utopia, que envolve decénios do meu amadurecimento. Não podia ser rapidamente captado pelas pessoas que se interessaram pelo Instituto. Os companheiros que comigo o fundaram empurraram-me e gostei. Mas agora estou numa fase em que me interessa mais passar a escrito as coisas que fiz e disse do que continuar a fazer obras.
- É por isso que o Instituto não lhe agrada? (8)
- Eu não disse que não me agrade. Está a fazer coisas interessantes, mas não está dentro daquilo que eu tinha imaginado. Eu próprio lhe chamei utopia, mas espero que, com tempo, hão-de chegar a qualquer coisa equivalente ou paralelo àquilo que eu expus. Um dia, as pessoas hão-de perceber! E fazer aquilo ou outra coisa, desde que façam sentir à sociedade que perdeu a instituição familiar como centro de educação. Na sociedade de hoje - não só em Portugal, em todo o mundo - entrega-se a educação ao Estado. Contudo, o mais importante é o que está antes da escola, ou fora dela. Só quando a escola for tudo, o que está dentro e fora do edifício escolar, é que estarão salvaguardados os interesses da criança e dos familiares. (9)
Aqui está, é exactamente como Fernando Birri disse na resposta à pergunta sobre a utopia: pôde o dr. João dos Santos dar mais dez passos em frente; e a utopia afastou-se também mais dez passos.


Próximo capítulo: O Instituto da Criança: ideias fortes


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(1) 
João dos Santos, “A Caminho de uma Utopia… Um Instituto da Criança”, Lisboa, Livros Horizonte, 1982, p. 32.
(2) João dos Santos e outros, “Educação Estética e Ensino Escolar, Lisboa, Publicações Europa-América”, 1966, p. 7.
(3) João dos Santos e outros, “Educação Estética e Ensino Escolar, Lisboa, Publicações Europa-América”, 1966, p. 12.
(4) João dos Santos é autor, neste livro, de um extenso capítulo (Fundamentos Psicológicos da Educação pela Arte), composto por uma introdução e os seguintes subcapítulos: Evolução Psicológica da Criança, O Falar não é a Única Forma de Linguagem, Linguagem Falada e Linguagem Escrita, Importância da Psicologia Genética na Educação, Desenho e Pintura Livres; e uma Conclusão.
(5)                                                                                         I. O INFANTE
Deus quer, o homem sonha, a obra nasce.
Deus quis que a terra fosse toda uma,
Que o mar unisse, já não separasse.
Sagrou-te, e foste desvendando a espuma.
E a orla branca foi de ilha em continente,
Clareou, correndo, até ao fim do mundo,
E viu-se a terra inteira, de repente,
Surgir, redonda, do azul profundo.
Quem te sagrou criou-te português.
Do mar e nós em ti nos deu sinal.
Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez.
Senhor, falta cumprir-se Portugal! (s.d.)
Mensagem. Fernando Pessoa. Lisboa: Parceria António Maria Pereira, 1934 (Lisboa: Ática, 10ª ed. 1972).  - 57. (http://arquivopessoa.net/textos/2375)
(5) https://www.youtube.com/watch?v=m-pgHlB8QdQ, consultado em 22 de Outubro de 2016.
(6) "L'Atlas des Utopies", Édition 2017, Groupe La Vie - Le Monde, Paris, p. 20.
(7) João dos Santos, “A Caminho de uma Utopia… Um Instituto da Criança”, Lisboa, Livros Horizonte, 1982, pp. 32-33.
(8) Trata-se do Instituto da Criança, criado oficialmente em 1983.
(9) João dos Santos, "Retrato de um mestre utópico e irónico", in Diário de Notícias, Lisboa, 4 de Novembro de 1984.
(10) Construo uma outra analogia entre João dos Santos e Rafael Hitlodeu, sustentada no que recordo das conversas que João dos Santos tinha com os seus alunos, ou outras audiências mais alargadas. Costumava ele dizer que, na idade a que chegara, já não trabalhava, já só fazia o que queria, já só fazia coisas interessantes. Também Rafael Hitlodeu, quando Thomas Morus põe Pedro Gilles a insistir com Rafael para que ponha o seu saber ao serviço dos príncipes, que certamente melhorará a sua própria condição pessoal, Rafael responde que isso o levaria a um estilo de vida que repugnaria a sua natureza, e que naquela altura já vivia como queria, o que certamente seria privilégio de pouca gente.



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